O ego
segundo o budismo tibetano.
“Uma das
maneiras de olhar a natureza da existência é a partir do ponto de vista de
nossa própria percepção, da maneira como experimentamos o mundo individual que
cada um de nós habita. Todos os fenômenos que aparentam existir fora de nós
estão também contidos dentro deste mundo, porque a nossa experiência real
deles somente existe dentro de nossas mentes, intermediada pelos sentidos.
A palavra dharma tem o sentido básico de
manter e apoiar. Seu uso primário é para transmitir as ideias de lei, religião
e dever que preservam a sociedade humana e são preservados por ela em uma
relação recíproca; em um nível pessoal, significa
o papel especial na vida que cada ser vivente nasceu para realizar — a
verdade interior da pessoa, a lei pela qual alguém vive. Pode também significar
a natureza inerente da qualidade de qualquer coisa, a lei que determina
exatamente o que cada coisa é e faz. Assim como o dharma de um rei é reinar o dharma do fogo é queimar. Nesse
sentido , existem inúmeros dharmas,
as leis fundamentais de tudo que existe. Entre eles, certos elementos físicos e
psicológicos em particular foram identificados no budismo como estando na raiz
de nossa maneira de perceber o mundo.
A ligação
entre dharma e os dharmas é a própria ideia de lei
interior e verdade. O dharma ensinado
pelo Buda revela a verdade sobre a existência, a lei final da vida. Dharma, a verdade em si,
manifesta-se espontaneamente como os muitos dharmas, as realidades fragmentadas
da existência relativa, temporária. Eles tomam muitas formas, aparecem e
desaparecem, ainda assim , em essência, nunca foram além da verdade.
No budismo,
o mundo externo nunca é considerado separado do observador. Só podemos conhecer
o mundo como o experimentamos . O universo físico certamente não é ignorado,
mas é sempre tratado como indivisivelmente ligado com o
mundo interior da consciência. Portanto, na análise budista, ele é
representado por somente cinco dharmas: o campo dos cinco sentidos. Todos os
fenômenos materiais são definidos pelo fato de que podem ser vistos, ouvidos,
farejados, saboreados ou tocados. [ver SUTRA do CORAÇÃO] Se não fossem
perceptíveis pelos sentidos, não saberíamos nada sobre eles, e o que quer
venhamos a conhecer chega até nós somente por meio dos sentidos. Todos os outros dharmas estão
envolvidos com os processos de percepção e consciência, e com
estados psicológicos. Esses estados mentais condicionam a maneira pela qual
experimentamos o mundo, de tal forma que mente e corpo, interior e exterior,
nunca podem ser separados. O sistema de dharmas descreve a existência, não
de uma forma teórica, mas como ela é realmente vivida por
seres conscientes de momento a momento.
Os dharmas
são uma ferramenta para análise, de forma a observar como o sentido de ser
surge a partir de uma combinação de muitos fatores diferentes e como evolui e
se perpetua, embora não tenha uma realidade independente própria. Nesse método
de análise, todos os dharmas são agrupados em cinco categorias, que são os “cinco skandhas”: forma,
sentimento, percepção, condicionamento e consciência.
A palavra
sânscrita Skandha tem um duplo
significado: pode indicar um grupo composto de unidades menores ou uma única
unidade que faz parte de um grupo maior, como uma divisão de exército que
contém muitos soldados, mas é parte de uma força muito maior. Tradicionalmente
em seu uso budista , a ênfase era no primeiro sentido, a ideia de que
cada skandha é composto de
um grupo de dharmas.
O sistema
dos skandhas demonstra como eles se combinam para produzir a ilusão de um ser,
e ainda assim esse ser não tem base na realidade. Embora sejamos tão
completamente apegados a ele, tudo o que somos e tudo o que experimentamos pode
ser explicado perfeitamente sem ele. Trungpa
Rinpoche descreveu
os cinco skandhas como o processo das cinco etapas do desenvolvimento do ego.
[1º Skandha –
Criação da Ignorância-Forma, três aspectos ou fases diferentes que podemos
examinar empregando outra metáfora. Suponhamos que, no princípio, haja uma
planície aberta sem montanhas nem árvores, uma terra completamente aberta, um
simples deserto sem nenhuma característica especial. Eis aí como somos, o que
somos. Somos simples e básicos. E, todavia, há um Sol que brilha, uma Lua que
brilha, e haverá luzes e cores, a textura do deserto. Haverá alguma sensação da
energia que brinca entre o Céu e a Terra. E, assim por diante, indefinidamente.
Depois, estranhamente, surge de improviso, alguém para notar tudo isso. Como se
um dos grãos da areia espichasse o pescoço para fora e principiasse a olhar à
sua volta. Nós somos o grão de areia, chegando a conclusão do nosso estado de
separação. Este é o “Nascimento da Ignorância” em seu primeiro estágio, uma
espécie de reação química. A dualidade começou.
A segunda fase da
Forma-Ignorância dá-se o nome de “A Ignorância Nascida no Interior”. Tendo
reparado que somos isolados, sobrevém a sensação de que sempre fomos assim. É
uma inépcia, o instinto da constrangedora consciência e si mesmo.
O terceiro tipo é a “Ignorância
que se Observa”, que se vigia. Há um sentido de nos vermos como objeto externo,
o que conduz à primeira noção do “outro”. Estamos começando a relacionar-se com
um mundo chamado “externo”. É por isso que os três estágios da ignorância
constituem o Skandha da Forma-Ignorância; estamos começando a criar o mundo das
formas.
2º Skandha – Sensação, como mecanismo de defesa para proteger a
nossa ignorância. Desde que já ignoramos o espaço aberto, gostaríamos de sentir
as qualidades do espaço sólido a fim de trazer completa satisfação à índole
gananciosa que estamos desenvolvendo. Nós solidificamos todo o espaço e
transformamos no “outro”.
3º Skandha – Percepção-Impulso, passamos a nos fascinar
pela nossa própria criação, cores e as energias estáticas, queremos nos
relacionar com elas e, dessa maneira, gradativamente, principiamos a
investigá-las. São esses os três tipos de impulso: ódio, desejo e estupidez.
Assim sendo, a percepção se refere à recepção de informações do mundo exterior
e o impulso se refere à nossa resposta a essas informações.
4º Skandha – Conceito; A fim de proteger-nos e
enganar-nos completa e adequadamente, precisamos do intelecto, da capacidade de
nomear e categorizar as coisas. Assim rotulamos coisas e eventos
qualificando-os “bons”, “maus”, “belos”, “feios”, etc., de acordo com o impulso
que julgamos apropriados a eles. O “eu” é o produto do intelecto, o rótulo que
unifica num todo o desenvolvimento desorganizado e disperso do ego.
5º Skandha – Consciência; Nesse nível se processa uma
amálgama: a inteligência intuitiva do Segundo Skandha, a energia do Terceiro
Skandha e a intelectualização do Quarto Skandha se misturam para produzir
pensamentos e emoções. Nessas condições, no nível do Quinto Skandha,
encontramos os Seis Reinos assim como padrões incontroláveis e ilógicos do
pensamento discursivo. Esse é o retrato completo do ego. Além do
materialismo Espiritual, Lama
Chogyan Trungpa.]
Cada um de
nós pensa em si como uma personalidade única, unificada, mas, se
examinarmos nossa experiência cuidadosamente, verificamos que nossos
pensamentos e sentimentos estão mudando todo o tempo, em um momento estou
feliz, no momento seguinte sinto-me contrariada ou zangada, depois já esqueço
por um novo interesse. Se uma parte de meu corpo está doendo, então sinto que
não sou nada além de dor. Em outras palavras, o “eu” está mudando
continuamente. Não existe um encadeamento consciente unificador que perpasse
todos os diferentes pensamentos e sentimentos. Somos uma corrente interminável
de estados psicológicos momentâneos e interconectados . É assim que uma pessoa
é vista no budismo. Em vez de um ser fixo, existe um fluir contínuo de momentos
de consciência, que é chamado de continuum mental
ou corrente mental. Os dharmas são partículas temporárias de experiência,
como gotas de água que fazem a corrente fluir, enquanto os skandhas podem ser
vistos como os padrões presentes na corrente.
O primeiro
passo em direção ao despertar é superar nossa visão ordinária, de senso comum
de nós mesmos como seres reais, sólidos e permanentes. Investigar as unidades
básicas da existência mina a solidez do nosso mundo. Aquilo que
chamamos “corpo” — ou uma mesa, uma árvore, ou qualquer coisa que seja — são
apenas nomes, termos convencionais; são na verdade somente coleções de dharmas,
surgindo e decaindo novamente, combinando-se temporariamente de acordo com
as circunstâncias. Desse ponto de vista os dharmas são reais; eles são as
realidades últimas, porque são o que realmente experimentamos. É o “ser” que é
irreal, apenas uma construção da mente.
A segunda
fase é revelado que os próprios dharmas são vazios de qualquer existência
independente ou de natureza inerente própria. Nesse estágio, a meditação se
expande para além da área da própria falta de substancialidade individual para
compreender a natureza onírica do universo inteiro. Essa compreensão quebra a
barreira da dualidade do ser e do outro, e estimula o amor e a compaixão por
todos os seres viventes, que estão sofrendo desnecessariamente por causa de sua
confusão a respeito da existência. Não é mais necessário para o meditante se
concentrar em identificar os dharmas separados como um antídoto para o sentido
do ego. Ao contrário, com pelo menos uma experiência básica de sua ausência,
existe mais ênfase em entender o processo pelo qual nossa experiência de vida
baseada no ego é continuamente construída e mantida
pelos cinco skandhas, e em ser vista através de sua
aparente realidade.
Finalmente,
o ensinamento da terceira fase revela que a compreensão do vazio não é
nenhuma outra senão a da natureza de Buda. A ausência de um ser limitado,
individual, “não é o nada”, mas a
experiência da presença desperta. É o grande ser, puro desde o início. A
potencialidade para a iluminação existe dentro de cada um de nós, como uma
natureza verdadeira, original. Nosso estado desperto fundamental nunca foi
diminuído ou destruído, apenas obscurecido pela ignorância. Mas de onde surgiu
a ignorância? Ela surgiu daquele próprio estado básico, assim como uma ilusão.
Toda a elaborada estrutura do “ego” e do mundo samsárico de alguma forma se
desenvolveu sem qualquer realidade própria, como em um sonho”. Vazio Luminoso. Francesca Fremantle.
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