Soa estranho usar as palavras de Buda em um contexto,
digamos, de dois mil e seiscentos anos para tentar dar uma explicação atual. De
todas as parábolas que eu ouvi sobre os tais meios hábeis, duas se destacam: a da casa em chamas e da cidade fantasma.
Meias verdades brandas que são usadas para encaminhar. Nos dias de hoje
poderíamos considerar até uma blasfêmia dizer que os fins justificam os meios.
Tenho que fazer uma ressalva: o fim justifica os meios?!
Comumente escuta-se que o fim
justifica os meios numa alusão de que "certos" fins
podem, ou devem, ser alcançados através de métodos não convencionais, ou
antiéticos, ou violentos. Contudo no budismo este termo tem ares mais claros.
Esta me parece bem acertada, conforme esclarecido no texto do Budismo Essencial, A
Felicidade escrito pelo mestre Gyomay Kubose:
...o homem moderno
pensa que o fim é mais importante que os meios. Alguém disse que duas
ideologias modernas estão representadas por Stálin e Gandhi: o caminho de
Gandhi é que os meios são tão importantes quanto o fim, enquanto, para Stálin,
o fim é tão importante que justifica os meios. Os budistas aprendem que todos
os passos e todos os meios são muito importantes. Cada meio é, em si, um fim.
Para o artista, o músico e o escultor, o trabalho em si é prazer e
felicidade...
Também pudera, ele considerava que o budismo deveria ser uma
experiência pessoal e não apenas o de ir a templos e recitar sutras. A
experiência deve vir de dentro, ou não há substância. Para efeito, Kubose
colocou Buda no mesmo nível de Sócrates, em que o budismo seria primeiro uma filosofia, e só
depois uma religião. E voltamos para Sócrates e o conhecer-se a si mesmo.
Fugi um pouco do tópico. Infelizmente é necessário
transformar ideias atemporais em posts lineares, o que me parecia mais fácil de
imaginar do que executar. Portanto eu terei que sumariamente me desviar dos
assuntos abordados para conseguir obedecer os meus objetivos. De que somos
bombardeados e influenciados por outras conexões que não sejam tão óbvias
assim.
As histórias sempre se repetem. Certo, algumas parecem mais
absurdas ou incoerentes do que outras e portanto somos levados a crer que existam
pessoas que compartilham de certas vantagens.
É tudo uma questão de tempo e oportunidade para que possamos enfrentar os
nossos monstros. E como ouço muito que os enfrentamentos ou atritos ou
problemas ou obstáculos ou eteceteras são meios para nos impulsionar, começo a
acreditar que isto é verdade. Infelizmente temos a tendência de aceitar bem
somente os embates salutares, como uma competição profissional ou mesmo uma
prova de vestibular – é claro e evidente que existam muito outros bons combates
-, mas negligenciamos aqueles confrontos indigestos que teimam em nos
encurralar, porque não enfrentamos. O medo
nos impede de enfrentar um inimigo tão poderoso.
Superstições de mentes entalhadas – inclusive
a minha – sou o primeiro a levantar o dedo e confessar os meus medos.
Entre os meus maiores inimigos está uma doença incurável, aperfeiçoada pelas constantes observações de
médico que como tantos enfatizam as nossas incapacidades. Mas tudo bem, estas
seriam as minhas impressões do meu primeiro bom combate com ela:
“Lembro-me que estiquei as pernas e atravessei os
braços para me aquecer enquanto o ambiente hospitalar se esvaziava e me perdia
nas imagens de uma televisão muda. Não gostava de esperar por algo cujo
resultado eu sabia. As lâmpadas fluorescentes falhavam.
Estava escuro quando fui convocado. Bem sabia que a
consulta seria mais uma interminável rotina para verificar o meu quadro de saúde – ou de piora.
Para ser sincero, ainda não me sentia enfermo.
Entretanto havia recebido um título que
poderia mudar a vida de um homem, para sempre. Ainda me lembro do diagnóstico
depois de ressonâncias e exames de sangue, para o meu pavor de agulhas. Nestes episódios
eu me aproveitava da falsa impressão de que tudo estava bem e me confiava ao
medo com o subterfúgio de uma personalidade que eu só usava em casos
extremos.
Fechava bem fortes os olhos, dominava
a minha admoestação e terminava com expressão de bon-vivant. Pois era
esta que ainda me mantinha confortável perante as circunstâncias que eu mais
detestava. Médicos, hospitais, doentes e impotência.
Um dia desses, eu percebi um
comentário que me abalou. Ninguém quer ficar doente. Nada mais lógico.
Contudo, assim que eu soube que estava incuravelmente diagnosticado,
experimentei um alívio. Muito alívio. Alívio até demais.
Tanto alívio que o médico, que
esperava alguma reação nefasta ou caótica,
ficou me encarando absorto. Tenho quase certeza que ele pensou que eu não havia
entendido, ou estava em choque, ou mais doente do que cogitava. E daí se me
sentia bem?
Um doente é feito de seus exames.
E seus medicamentos, que no meu caso se compunham
de vacinas dia sim e não. Se era para ser uma catarse com agulhas, eu teria que
aplicá-las sozinho. E com o tempo se tornaria mais um hábito – doloroso.
Porém a doença é no cérebro, e eu desconfio que afeta algumas
das áreas mais inconvenientes para mim. Pois eu ainda tremo só de pensar em
agulhas, mesmo as finas e pequenas subcutâneas de aplicadores violentos – que
eu jamais pensei em usar.
A doença pode ser um carma, um
sofrimento sem fim, a doença deprime e corrói os sentimentos, destrói as
fundações familiares, sociais e profissionais. A doença redefine atitudes e
ações e atrai aqueles que te amam e afastam os falsos. Ou o contrário, afasta
aqueles que diziam te amar e atrai o amor de incógnitos.
Conforme suas crenças, a doença pode ser uma prova
ou expiação, um castigo, a punição de Deus.
Dívidas contraídas de um passado, missão ou a bondade de Deus. Porque
todo o mal passa inexoravelmente pelo crivo da bondade de Deus.
Por convenção eu me enquadraria
naqueles cuja enfermidade é a prova para aperfeiçoamento de algum débito
nascido em vidas antigas o suficiente para não me recordar. Ou seja, fiz e
agora tenho que pagar. Por sorte ainda consigo aceitar a resignação e
possivelmente consiga me adaptar às dificuldades que venham a surgir.
Menos para as mais óbvias. Porque
tenho a incapacidade de perceber os meus erros, assim como a maioria das
pessoas que apontam julgamentos de dedos firmes e não percebem que possuem as
mesmíssimas qualidades ao qual se apressam em denegrir.
As minhas aptidões neste campo
incluem que todos sempre são mais admiráveis do que eu. E acabo passando
a impressão errada de que eu estou melhor do que eu mesmo suponho.
Na primeira chance em que eu me confrontasse com o
espelho, veria um idiota
que não conseguia
disfarçar a sua azucrinante arrogância adubada por tolice.
Valendo-se de uma doença como
pretexto para uma situação que chegava à sua fronteira. Por isso senti alívio
quando algo justificou a minha fraqueza. Eu não era acusado pelas derrotas.
Embora também o seja.
Alguém assumia as minhas culpas – uma doença
degenerativa incurável – enquanto eu ganhava tempo para respirar aliviado.”
Capítulo 13, Livro de Mateus – eu mesmo.
A minha primeira incursão no mundo maravilhoso de Sócrates,
Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses. Sou capaz de assumir
as minhas fraquezas, por que você não? O que você teme mostrar para o mundo? É
capaz de deixar que medo, ansiedade, doença, arrogância, ignorância e tantas
outras criaturas místicas criem vida? Comece por se conhecer. Como?!