quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

122 - inato ou aprendido

André Rabelo e Felipe Novaes
Texto também publicado no Blog NERDWORKING e http://scienceblogs.com.br/socialmente/2011/04/inato-x-aprendido-parte-1/

Desde a Grécia antiga até os dias de hoje, uma ideia tem tido grande influência na discussão acerca da natureza humana – a dicotomia entre comportamentos inatos e aprendidos ou explicações biológicas e culturais do comportamento, o que ficou conhecido com o debate nature or nurture, natureza ou criação, inato ou aprendido.

Este debate acalorado teve seu auge na metade do século passado e seu período mais crítico durou cerca de 20 anos, apesar de muitos ambientes acadêmicos ainda enfrentarem este fantasma, fruto de uma antiga disputa que misturou posições ideológicas e políticas com científicas.

De um lado, sociobiólogos e etólogos afirmavam que grande parte dos comportamentos eram inatos; do outro, pesquisadores das ciências sociais e psicólogos behavioristas defendiam que a maior parte dos comportamentos (ou todos) eram aprendidos.

Geralmente, as ciências humanas, sociais e comportamentais adotavam, e ainda adotam em muitos círculos acadêmicos, uma ideia próxima da tabula rasa, conceito criado por John Locke, que afirma que o ser humano nasce como uma folha de papel em branco a ser preenchida pelas experiências. Essa ideia já deveria ter sido revisada desde que, nos últimos anos, repetidas evidências tem apontado diversos aspectos do ser humano como tendo fortes bases biológicas.

A dicotomia entre inato e aprendido foi sendo vagarosamente substituída por uma visão interacionista entre ambos – depois de perceberem que além do preto e do branco pode existir o cinza também, os estudiosos do ser humano puderam avançar consideravelmente no entendimento de como predisposições biológicas influenciam o comportamento humano e como o ambiente pode afetar a expressão de características genéticas, além de quando essa expressão poderá ocorrer (Dovidio et al., 2006).

Um dos autores do presente texto já descreveu em textos anteriores algumas evidências empíricas corroborando a ideia de que os seres humanos possuem determinadas tendências humanas inatas. Além disso, Dovidio dá dois exemplos para ilustrar a relação entre predisposições e o ambiente de um organismo: psicólogos do desenvolvimento conhecem, já há algum tempo, as diferenças individuais no temperamento de bebês (e.g. mais chorões ou calmos) desde o momento em que nasceram praticamente; também sabe-se hoje que determinados genes vinculados diretamente à atividade cerebral e à certos processos fisiológicos são ativados ou desativados por eventos ambientais.

Um outro exemplo é a linha de pesquisa sobre emoções humanas e suas expressões faciais desenvolvida pelo psicólogo Paul Ekman, que, inspirado nos estudos iniciais de Charles Darwin acerca da expressão de emoções em animais e em seres humanos, encontrou em seus estudos de povos primitivos que a expressão das emoções básicas (raiva, alegria, tristeza, desprezo, medo, surpresa e nojo) são praticamente as mesmas na espécie humana (Ekman, Sorenson e Friesen, 1969; Ekman, 2003), ainda que culturas diferentes possam dar nomes diferentes e acrescentar à sua expressão pequenas sutilezas; o que Ekman chama de emblemas e ilustradores. Todavia, ainda hoje muitos cientistas da área de humanas rejeitam essas pesquisas e chamam Ekman de preconceituoso e racista.

Apesar de esses esclarecimentos terem sido absorvidos por alguma parte da comunidade científica, a negação da natureza humana ainda é algo comum em muitas universidades no mundo, como o psicólogo Steven Pinker ilustra e explora em um de seus livros, Tábula Rasa: A Negação Contemporânea da Natureza Humana. Conforme Pinker (2004):

O tabu da natureza humana não só põe lentes nos pesquisadores, mas também faz de qualquer discussão sobre o tema uma heresia que precisa ser aniquilada. Muitos autores, de tão desesperados para desabonar toda insinuação de uma constituição humana inata, jogam a lógica e a civilidade pela janela. Distinções elementares – entre “alguns” e “todos”, “provável” e “sempre”, “é” e “tem de ser” – são sofregamente menosprezadas a fim de que a natureza humana seja pintada como uma doutrina extremista e, com isso, os leitores sejam conduzidos para longe dela.

A análise de ideias é comumente substituída por difamações políticas e pessoais. Esse envenenamento da atmosfera intelectual privou-nos dos instrumentos para analisar questões prementes sobre a natureza humana, justamente quando novas descobertas científicas as tornam críticas.

Antropólogos, sociólogos, cientistas políticos, psicólogos e psicanalistas se figuram como os mais ardentes negadores de explicações biológicas acerca do comportamento humano. Para muitos deles, o comportamento pode ter uma base inata, mas o processo de aprendizagem é muito mais importante na hora de explicar o comportamento das pessoas. Também existem concepções mais radicais do ser humano beirando um reducionismo cultural: tudo que o ser humano faz é determinado por sua aprendizagem cultural, as culturas variam de forma quase infinita, caótica e  de acordo com nenhum padrão, sendo que até mesmo urinar ou defecar são apenas práticas culturalmente aprendidas.


Antes mesmo da presença marcante das ciências naturais no debate, como a genética comportamental e a neurociência, esse aspecto já havia sido explorado de alguma forma pelo psicólogo e médico suíço Carl Jung, por exemplo. Ele percebeu que existem diversos símbolos e conceitos de mitologias de povos diferentes, mas que são muito semelhantes. De fato, vemos certas estruturas presentes largamente por aí, tal como o arquétipo do herói, por exemplo, que rege a jornada de heróis como Jesus, Buda, Hércules, Ulisses e outros heróis mitológicos, independente de haver fundo histórico em suas narrativas.

Hoje em dia compreende-se que a pergunta “é inato ou aprendido” é, além de mal formulada, inútil e retrógrada, pois se baseia numa suposta oposição excludente entre o que é inato ou aprendido, quando de fato os dois conceitos não são opostos, e muito menos excludentes.

Toda essa resistência em considerar as evidências não resultou de pesquisas sistematicamente conduzidas que chegaram à outras conclusões, mas principalmente de ideologias que pretendem fundar e modificar a história humana, selecionando as conclusões “politicamente corretas” às quais os cientistas podem chegar. Algo como “vocês cientistas não devem chegar à essas conclusões, olhem o que poderão estar estimulando”.
Existe nesse pensamento uma noção muito desinformada do que é a pesquisa científica: cientistas fazem pesquisas onde, através de um teste bem elaborado, podem obter mais de um resultado, que acabe corroborando ou não suas hipóteses. Porém, o resultado que será obtido no teste deve estar fora do seu controle de manipulação, portanto não faz parte da pesquisa científica escolher o resultado de algo.

[continua…]


Referências:
Dovidio et al. (2006). The social psychology of prosocial behavior. New York: Lawrence Earlbaum.
Ekman, P. (2003). Emotions revealed: Recognizing faces and feelings to improve communication and emotional life. New York: Times Books.
Ekman P, Sorenson ER, & Friesen WV (1969). Pan-cultural elements in facial displays of emotion. Science (New York, N.Y.), 164 (3875), 86-8 PMID: 5773719
Pinker, S. (2004). Tábula Rasa: A Negação Contemporânea da Natureza Humana. São Paulo: Companhia das Letras.

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