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sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

123 - inato ou aprendido p2

A rejeição contemporânea da natureza humana tem a ver com o medo da desigualdade, do racismo, da guerra e da violência, visto que durante o século XX algumas explicações biológicas foram (mal) forjadas por pessoas para justificar ideias eugenistas e racistas.

Portanto, tais receios não são totalmente injustificáveis, visto que movimentos como o nazismo, por exemplo, ficaram conhecidos por fazer uso de explicações supostamente biológicas (como a noção de raça superior que deveria dominar), de uma forma totalmente deturpada para cometer atrocidades.

O problema é que estas preocupações que se pautam exageradamente no passado acabam ignorando a proposta atual da utilização de explicações biológicas, que é diferente da que foi feita, de forma distorcida e desonesta, no passado por certas figuras políticas.

A própria biologia se encarregou de demonstrar que somos todos primos, unidos pela mesma árvore da vida, sendo que diferenças superficiais como a cor da pele ou o formato dos olhos não podem dizer quais são os nossos potenciais nem as nossas características fundamentais, muito menos a nossa função social. Dois avanços importantes na teoria genética ajudaram a desmistificar o determinismo genético (Gould, 1991): a ideia de herança poligênica e a falta de diferenciação genética entre humanos. Essas duas ideias podem ser resumidas, respectivamente, da seguinte forma: as características humanas são o resultado da participação de vários genes juntamente com um “exército de efeitos interativos e ambientais” (Gould, 1991); as diferenças genéticas entre indivíduos das diversas raças humanas são extremamente pequenas, ou seja, não existem “genes raciais” que diferenciem uma raça da outra.

A antipatia à explicações biológicas, ironicamente uma “herança” do debate entre o que era inato ou aprendido, surgiu principalmente por conta de ideias como o darwinismo social, o determinismo genético e a frenologia (é uma teoria que reivindica ser capaz de determinar o caráter, características da personalidade, e grau de criminalidade pela forma da cabeça.)

O darwinismo social foi um pensamento desenvolvido inicialmente por Robert Spencer, que defendia a aplicação da ideia de “sobrevivência dos mais aptos” às instituições sociais (Otta e Yamamoto, 2009), justificando assim, de alguma forma, a desigualdade social como sendo um resultado natural do sucesso dos mais aptos. Esta concepção foi uma utilização distorcida e superficial da teoria da evolução de Darwin, mas que ganhou a simpatia de determinados setores da sociedade interessados em justificar a desigualdade e políticas preconceituosas como a eugenia e a higienização social.

A forma brutal como a natureza funciona não deve ser o modelo no qual devemos basear nossa sociedade, e a teoria da evolução de Darwin não propôs que devêssemos nos inspirar na natureza para construir uma sociedade. Argumentar que algo é bom porque é natural é uma falácia naturalista, visto que as questões factuais com as quais a teoria de Darwin lidava nada tinham a informar sobre questões morais nem poderiam provar a validade de qualquer julgamento de valor (Evans e Zarate, 1999).

O determinismo genético foi uma visão que muitos biólogos tiveram do papel dos genes nas características fenotípicas e no comportamento das pessoas, e que hoje em dia não encontra apoio na comunidade científica. Muitos etólogos e psicobiólogos acreditavam que os animais herdavam de seus ancestrais padrões fixos de resposta e que a hereditariedade seria a principal origem até mesmo de comportamentos mais complexos.

A briga entre etólogos e psicólogos behavioristas se amenizou quando ambos começaram a perceber que seus modelos eram corroborados por várias evidências, o que indicava que a suposta “oposição excludente” entre o aprendido e o genético não era tão verdadeira. Etólogos entenderam que comportamentos poderiam ser altamente flexíveis e modificáveis, ao passo que behavioristas passaram a compreender que existem predisposições em muitos organismos para associar determinados estímulos, além de existirem fortes restrições biológicas aos estímulos que podem ser condicionados.

Como os exemplos citados no início da Parte 1 deixam claro, atualmente os biólogos não estão propondo que genes determinam o destino das pessoas, tamanha é a influência do ambiente e da nossa capacidade de adaptação. Diferentes características terão diferentes influências genéticas, e uma grande parte das características humanas poderá se expressar de diferentes formas a depender do seu ambiente.

O campo de estudo da epigenética, por exemplo, vem se consolidando como importante avanço na biologia molecular ao investigar como padrões de expressão genética de um indivíduo podem ser modificados pelo ambiente e transmitidos para seus descendentes. Esse campo de pesquisa evidencia que os biólogos tem investigado seriamente os efeitos do ambiente de desenvolvimento dos organismos e que, portanto, o determinismo genético é uma visão ingênua, antiga, insuficiente e desatualizada do entendimento biológico humano.
A frenologia foi apropriada pelo senso comum para classificar as pessoas em violentas e bondosas, de acordo com protuberâncias no crânio. Nessa época, muitos estudiosos foram contra a ideia porque era bem exótico pensar que um tecido gelatinoso como o cérebro exercesse pressão suficiente contra o crânio ao ponto de formar elevações. Mas como a ideia da frenologia encontrou um solo fértil, ela fez mais sucesso. Outro exemplo é “a anatomia de um assassino”, criada pelo italiano Cesare Lombroso.

Essas e outras ideias hoje não possuem mais aceitação na comunidade científica, mas ainda assim as ciências humanas guardaram um profundo rancor de tudo que tem biologia no nome ou está associado à ela. Isso as impede de reconhecer as conclusões tiradas de pesquisas biológicas, se esquecendo de que o homem também possui uma biologia, e não só uma história. É preciso reconhecer as dimensões de atuação orgânica. Uma das linhas de pesquisa mais emblemáticas desse caso é a que estuda os gêmeos.

Uma série de estudos indica que gêmeos idênticos criados separadamente são muito parecidos, gêmeos idênticos criados juntos são mais parecidos do que gêmeos fraternos criados juntos e irmãos biológico são mais parecidos do que irmãos adotivos (Bouchard, 1994, 1998; Bouchard e McGue, 1990; Lykken et al., 1992; Plomin, 1990; Plomin, Owen e McGuffin, 1994; Strmswold, 1998, 2001). Por outro lado, a relação entre o QI e a personalidade de adultos que quando pequenos foram criados juntos como irmãos adotivos é insignificante (Plomin, 1990).

Uma pesquisa curiosa sobre o assunto mostra que se você tem um irmão gêmeo idêntico que se divorciou, você possui 18 vezes mais chance de se divorciar também. Já no caso de irmãos fraternos, a probabilidade cai para 2 vezes somente (MgGue e Lykken, 1992). Esse é um exemplo claro de como a genética possui correlação com o comportamento. Mas isso não significa que haja uma correlação causal com o ato do divórcio. Não existe um gene do divórcio, mas existem certos fatores influenciados pela genética que se correlacionam com a possibilidade maior ou menor de alguém ser apto a uma vida a dois. Alguns desses fatores é o temperamento, a agressividade e a sede por dominância. Esse tipo de relação é chamada de covariação-gene-ambiente.

Não precisamos temer um surto psicótico mundial ou a ascensão de um novo regime ditatorial e racista só por reconhecer que como espécie, as pessoas compartilham uma natureza. Aceitarmos que o comportamento violento, por exemplo, não é apenas uma criação histórica, poderia nos ajudar a compreender de forma mais completa este comportamento e, consequentemente, poderia resultar em meios mais eficazes de reduzir o comportamento violento. O mesmo aconteceria com certas injustiças sociais, como a humilhação que certos grupos, etnias e raças sofrem (como a exploração de mão-de-obra infantil, tratamento humilhante sofrido contra as mulheres em países machistas como o Irã; a mutilação de órgãos sexuais em rituais religiosos).

Supor que o ser humano é uma tábula rasa pode incentivar ou ignorar atitudes como a tolerância ao tratamento miserável que é dado à mulher em certos países, mutilações e comportamentos em geral que infringem dor às pessoas. O argumento de que temos que respeitar culturas diferentes, pois cada uma é singular, acaba a partir do momento em que o sofrimento é causado, visto que dor não é apenas uma criação cultural. Afinal, não importa a cultura, ninguém gostará de ser ferido nem menosprezado de forma cruel, por mais que aprenda a se submeter e não questionar os sofrimentos aos quais é imposto.

Podemos concluir o entendimento que surgiu do debate entre inato e aprendido da seguinte forma: as bases genéticas dos comportamentos e o ambiente onde o organismo vive fazem parte de um único processo, o desenvolvimento. Portanto, aspectos biológicos e de aprendizagem do comportamento não são de forma alguma excludentes ou suficientes cada um em si, mas sim duas dimensões totalmente interligadas do processo de desenvolvimento de um organismo.

Referências:
Bouchard, T. (1994). Genes, environment, and personality. Science, 264 (5166), 1700-1701 DOI: 10.1126/science.8209250
Bouchard TJ Jr (1998). Genetic and environmental influences on adult intelligence and special mental abilities. Human biology, 70 (2), 257-79 PMID: 9549239
Bouchard, T., & McGue, M. (1990). Genetic and Rearing Environmental Influences on Adult Personality: An Analysis of Adopted Twins Reared Apart. Journal of Personality, 58 (1), 263-292 DOI: 10.1111/j.1467-6494.1990.tb00916.x
Evans, D., & Zarate, O. (1999). Introducing evolutionary psychology. Cambridge, United Kingdom: Icon Books.
Gould, S. J. (1991). A falsa medida do homem. São Paulo, Martins Fontes.
Lykken, D., McGue, M., Tellegen, A., & Bouchard, T. (1992). Emergenesis: Genetic traits that may not run in families. American Psychologist, 47 (12), 1565-1577 DOI: 10.1037//0003-066X.47.12.1565
McGue, M., & Lykken, D. (1992). Genetic influence on risk of divorce. Psychological Science, 3 (6), 368-373 DOI: 10.1111/j.1467-9280.1992.tb00049.x
Otta, E. & Yamamoto, M. E. (2009). Psicologia Evolucionista. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.
Plomin, R. (1990). The role of enhiritance in behavior. Science, 248, pp. 183-248.
Plomin, R. (1995). Nature and nurture an introduction to human behavioral genetics. The Japanese Journal of Human Genetics, 40 (1), 153-154 DOI: 10.1007/BF01874080
Plomin, R. & Bergeman, C. (1991). The nature of nurture: Genetic influence on enviromental measures. Behavioral  and Brain Sciences 14, 373-427.
Plomin, R. & McClearn, G.E. (1993). Nature, Nurture and Psychology. Washington: American Psychological Association.
Plomin, R., Owen, M., & McGuffin, P. (1994). The genetic basis of complex human behaviors Science, 264 (5166), 1733-1739 DOI: 10.1126/science.8209254
Rachels, J. (1991). Created from animals: The moral implications of Darwinism. New York: Oxford University Press.
Stromswold, K. (1998). Genetics of Spoken language disorders. Human Biology, 70, pp. 297-324.
Stromswold, K. (2001). The Heritability of Language: A Review and Metaanalysis of Twin, Adoption, and Linkage Studies. Language, 77 (4), 647-723 DOI: 10.1353/lan.2001.0247

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

122 - inato ou aprendido

André Rabelo e Felipe Novaes
Texto também publicado no Blog NERDWORKING e http://scienceblogs.com.br/socialmente/2011/04/inato-x-aprendido-parte-1/

Desde a Grécia antiga até os dias de hoje, uma ideia tem tido grande influência na discussão acerca da natureza humana – a dicotomia entre comportamentos inatos e aprendidos ou explicações biológicas e culturais do comportamento, o que ficou conhecido com o debate nature or nurture, natureza ou criação, inato ou aprendido.

Este debate acalorado teve seu auge na metade do século passado e seu período mais crítico durou cerca de 20 anos, apesar de muitos ambientes acadêmicos ainda enfrentarem este fantasma, fruto de uma antiga disputa que misturou posições ideológicas e políticas com científicas.

De um lado, sociobiólogos e etólogos afirmavam que grande parte dos comportamentos eram inatos; do outro, pesquisadores das ciências sociais e psicólogos behavioristas defendiam que a maior parte dos comportamentos (ou todos) eram aprendidos.

Geralmente, as ciências humanas, sociais e comportamentais adotavam, e ainda adotam em muitos círculos acadêmicos, uma ideia próxima da tabula rasa, conceito criado por John Locke, que afirma que o ser humano nasce como uma folha de papel em branco a ser preenchida pelas experiências. Essa ideia já deveria ter sido revisada desde que, nos últimos anos, repetidas evidências tem apontado diversos aspectos do ser humano como tendo fortes bases biológicas.

A dicotomia entre inato e aprendido foi sendo vagarosamente substituída por uma visão interacionista entre ambos – depois de perceberem que além do preto e do branco pode existir o cinza também, os estudiosos do ser humano puderam avançar consideravelmente no entendimento de como predisposições biológicas influenciam o comportamento humano e como o ambiente pode afetar a expressão de características genéticas, além de quando essa expressão poderá ocorrer (Dovidio et al., 2006).

Um dos autores do presente texto já descreveu em textos anteriores algumas evidências empíricas corroborando a ideia de que os seres humanos possuem determinadas tendências humanas inatas. Além disso, Dovidio dá dois exemplos para ilustrar a relação entre predisposições e o ambiente de um organismo: psicólogos do desenvolvimento conhecem, já há algum tempo, as diferenças individuais no temperamento de bebês (e.g. mais chorões ou calmos) desde o momento em que nasceram praticamente; também sabe-se hoje que determinados genes vinculados diretamente à atividade cerebral e à certos processos fisiológicos são ativados ou desativados por eventos ambientais.

Um outro exemplo é a linha de pesquisa sobre emoções humanas e suas expressões faciais desenvolvida pelo psicólogo Paul Ekman, que, inspirado nos estudos iniciais de Charles Darwin acerca da expressão de emoções em animais e em seres humanos, encontrou em seus estudos de povos primitivos que a expressão das emoções básicas (raiva, alegria, tristeza, desprezo, medo, surpresa e nojo) são praticamente as mesmas na espécie humana (Ekman, Sorenson e Friesen, 1969; Ekman, 2003), ainda que culturas diferentes possam dar nomes diferentes e acrescentar à sua expressão pequenas sutilezas; o que Ekman chama de emblemas e ilustradores. Todavia, ainda hoje muitos cientistas da área de humanas rejeitam essas pesquisas e chamam Ekman de preconceituoso e racista.

Apesar de esses esclarecimentos terem sido absorvidos por alguma parte da comunidade científica, a negação da natureza humana ainda é algo comum em muitas universidades no mundo, como o psicólogo Steven Pinker ilustra e explora em um de seus livros, Tábula Rasa: A Negação Contemporânea da Natureza Humana. Conforme Pinker (2004):

O tabu da natureza humana não só põe lentes nos pesquisadores, mas também faz de qualquer discussão sobre o tema uma heresia que precisa ser aniquilada. Muitos autores, de tão desesperados para desabonar toda insinuação de uma constituição humana inata, jogam a lógica e a civilidade pela janela. Distinções elementares – entre “alguns” e “todos”, “provável” e “sempre”, “é” e “tem de ser” – são sofregamente menosprezadas a fim de que a natureza humana seja pintada como uma doutrina extremista e, com isso, os leitores sejam conduzidos para longe dela.

A análise de ideias é comumente substituída por difamações políticas e pessoais. Esse envenenamento da atmosfera intelectual privou-nos dos instrumentos para analisar questões prementes sobre a natureza humana, justamente quando novas descobertas científicas as tornam críticas.

Antropólogos, sociólogos, cientistas políticos, psicólogos e psicanalistas se figuram como os mais ardentes negadores de explicações biológicas acerca do comportamento humano. Para muitos deles, o comportamento pode ter uma base inata, mas o processo de aprendizagem é muito mais importante na hora de explicar o comportamento das pessoas. Também existem concepções mais radicais do ser humano beirando um reducionismo cultural: tudo que o ser humano faz é determinado por sua aprendizagem cultural, as culturas variam de forma quase infinita, caótica e  de acordo com nenhum padrão, sendo que até mesmo urinar ou defecar são apenas práticas culturalmente aprendidas.


Antes mesmo da presença marcante das ciências naturais no debate, como a genética comportamental e a neurociência, esse aspecto já havia sido explorado de alguma forma pelo psicólogo e médico suíço Carl Jung, por exemplo. Ele percebeu que existem diversos símbolos e conceitos de mitologias de povos diferentes, mas que são muito semelhantes. De fato, vemos certas estruturas presentes largamente por aí, tal como o arquétipo do herói, por exemplo, que rege a jornada de heróis como Jesus, Buda, Hércules, Ulisses e outros heróis mitológicos, independente de haver fundo histórico em suas narrativas.

Hoje em dia compreende-se que a pergunta “é inato ou aprendido” é, além de mal formulada, inútil e retrógrada, pois se baseia numa suposta oposição excludente entre o que é inato ou aprendido, quando de fato os dois conceitos não são opostos, e muito menos excludentes.

Toda essa resistência em considerar as evidências não resultou de pesquisas sistematicamente conduzidas que chegaram à outras conclusões, mas principalmente de ideologias que pretendem fundar e modificar a história humana, selecionando as conclusões “politicamente corretas” às quais os cientistas podem chegar. Algo como “vocês cientistas não devem chegar à essas conclusões, olhem o que poderão estar estimulando”.
Existe nesse pensamento uma noção muito desinformada do que é a pesquisa científica: cientistas fazem pesquisas onde, através de um teste bem elaborado, podem obter mais de um resultado, que acabe corroborando ou não suas hipóteses. Porém, o resultado que será obtido no teste deve estar fora do seu controle de manipulação, portanto não faz parte da pesquisa científica escolher o resultado de algo.

[continua…]


Referências:
Dovidio et al. (2006). The social psychology of prosocial behavior. New York: Lawrence Earlbaum.
Ekman, P. (2003). Emotions revealed: Recognizing faces and feelings to improve communication and emotional life. New York: Times Books.
Ekman P, Sorenson ER, & Friesen WV (1969). Pan-cultural elements in facial displays of emotion. Science (New York, N.Y.), 164 (3875), 86-8 PMID: 5773719
Pinker, S. (2004). Tábula Rasa: A Negação Contemporânea da Natureza Humana. São Paulo: Companhia das Letras.